quinta-feira, 24 de setembro de 2009

achados na gaveta - parte I - o vício.

Depois do ranger da porta denunciando a saída dele, não mais que silenciosa e indiferente – ela sentada, de cabeça baixa na poltrona, resolveu que ia mudar. Não queria mais ser aquela portadora de sentimentos pesados, acorrentados aos seus pés. Decidiu abrir mão de si para tentar ser outra, aproveitando o pouco de coragem que lhe aparecia timidamente. Começou arrancando todas as lágrimas, uma a uma. Por mais que doesse ou arrancasse sangue dos olhos, ela estava decidida a deixar sua alma seca, disposta a pagar o preço que isso exigia. E isso exigia muita dor. Mas como teimosa que era, estava ali para dar a cara à tapa, ou os olhos as lágrimas. E foi arrancando uma a uma, pacientemente, como quem não tem pressa para olhar o horizonte com os mesmos olhos e não com os mesmos sonhos.

O rímel negro havia manchado toda a pele e teve a necessidade de arrancar toda aquela máscara negra e toda aquela armadura de seu corpo. Então, despiu-se e no lugar da armadura, resolveu cobrir-se de arame farpado. Assim, quando ele voltasse, ela estaria esperando-o de braços abertos, sedentos para um afago traidor. Ele louco para abraçar o seu corpo, encontraria uma surpresa levemente agradável. E eterna como uma cicatriz profunda.

Ao se vestir com o cinza das farpas traiçoeiras, resolveu abortar muito dos planos do futuro. Procurou algum objeto que tivesse uma ponta lancinante. Encontrou apenas uma dessas agulhas de tricô, as mesmas que bordam roupas para quem chega a vida repleto de sonhos. Resolveu não pensar muito e com suas próprias mãos foi perfurando cada esperança contida em cada sonho. Ela sentia a dor latejando, mas isso, em questão de minutos desapareceria e daria lugar a uma terna sensação de anestesiamento. Então abortou sonho por sonho e depois de ficar livre do peso do que não era mais necessário, resolveu sair na noite para perder a moral de copo em copo ou de cama em cama.

Penteou os cabelos, passou o batom vermelho, colocou seus pés delicados em suas botas de combate e saiu como quem deixa a convento para deitar-se em lençóis sujos com restos humanos. Saiu com o olhar mais negro do que nunca. Ainda eram os mesmos olhos negros, mas agora eram também os mais vazios. Andou pela noite, tentando se fazer a mulher mais sedutora, porém havia algo errado. Os rapazes fugiam dela, a cada toque, a cada carinho, a cada beijo e a cada abraço.

Aquilo a irritava. Aquele desprezo lhe causava revolta. Será que não teria experimentado todo desprezo do mundo e como se não lhe bastasse agora lhe ignoravam mais ainda? Será que necessitava de mais desprezo? Será que não tivera o bastante? Antes de querer chorar entre os transeuntes anônimos, resolveu voltar para sua casa.

Na volta, com a madrugada reinando entre os becos e os bêbados da cidade, andando sem pressa, ela parou para se olhar no vidro daquela loja de beleza fútil. Ao parar e olhar para dentro do reflexo de seus próprios olhos o vidro estilhaçou-se em mil pedaços, transformando-se em espelhos caídos pela calçada, que ela pisava com os pés descalços.

Com as botas de combate nas mãos, foi pisando nos pequenos cacos e então viu seu reflexo. Chorou. Ela tinha se transformado naquilo que mais crucificara. Tinha se transformado em quem mais odiava amando desesperadamente. Sentiu o arame farpado que vestia apertando sua carne, espelhando um rastro de sangue por onde passava. Entendeu o porquê dos rapazes fugirem de seu toque e de seus beijos. Eles fugiam, pois no primeiro ato de carinho eram friamente golpeados, perdendo sangue e toda aquela vitalidade que os jovens têm.

Os estilhaços no chão, o sangue deixando rastros no caminho e o reflexo da penúria. Ela não agüentou o que viu, não agüentou ser o que mais odiava. Angustiada, saiu correndo sobre os cacos, procurando alguma forma de se livrar do que havia se tornado. Enquanto corria, foi arrancando as farpas do arame que envolvia seu corpo. Isso exigia dela uma força desmedida, arrancar farpa por farpa deixava cicatrizes ferrenhas naquele corpo tão jovem. Mas não havia outro caminho. Ela precisava arrancar aquilo, como os desesperados precisam de um milagre para continuar a viver.

Ao fim da madrugada, com os primeiros raios solares materializando-se em cantos de pássaros, ela sentia seu corpo em carne viva – mas livre de armaduras, farpas, medos e incertezas. Era mais uma semana que começava ali e ela precisava seguir, mesmo com a ausência colossal de quem tanto amava. Levantou da banheira de sangue e de lágrimas, com o corpo todo doído e se olhou no espelho. Apesar do vermelho gritante de sua carne, aquela sim era ela. Sem máscaras, sem medos e sem mentiras.

A pele viva latejada como quem pede por socorro. A alma outrora seca estava encharcada mais uma vez, de sonhos, sutilezas e quereres. Foi então que ela despiu de sua pele e a vestiu pelo avesso - com a intenção de esconder todas aquelas cicatrizes e de sentir o mundo com a força dos desejos – porque tudo o que a tocar, tocará direto na carne. Viva.

Vestiu a roupa mais comum, colocou seus óculos escuros, amarrou seus cabelos da forma mais simples e resolveu sair para comprar flores e tomar um café forte. Por vezes a encontro com um drink na mão, roubando todos os olhares da noite. Por vezes a encontro sorrindo, carregando flores de plástico. E por vezes a encontro, abraçada com o velho arame farpado, entendendo que seu destino nessa vida Severina é um constante momento de morte e ressurreição. A ela, dou o nome de mulher.

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